Contos de Terror: "Herança Doentia"


Aquilo a que chamamos de "Mal" ou "Maldade", nasce, cresce, desenvolve-se, se reproduz, se espalha... mas morrerá apenas se for tocado por uma força maior, algo que seja mais forte que a própria escuridão latente. Nunca estaremos preparados para lidar com o lado negro da Força, a menos que sejamos treinados eficientemente e esta prática só virá a partir da experiência.


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Baseado em fatos reais

A festa de formatura havia terminado há cerca de meia hora, e alguns grupos jaziam reunidos nos cantos do grande salão. Durante toda a noite, Jorge carregava para onde fosse um enorme livro grosso com páginas velhas e amassadas, e volta e meia, flagravam-no lendo algumas de suas páginas com curiosidade inquietante. Não era normal alguém ficar lendo durante uma festa!

Voltando para casa, Miriam questiona sobre o livro. Jorge imediatamente entra em um estado de profunda reflexão e minutos depois, desabafa: "Certas coisas mudam a nossa vida e estas mesmas coisas norteiam todo o resto dela. O livro foi presente de formatura de um velho amigo. Mandou alguém me entregar durante a festa". Miriam respirou fundo, pois sabia de quem se tratava.

Jorge, de súbito, deu meia volta ao carro e estacionou em frente a um parquinho. "Preciso te contar uma coisa", disse sob um olhar sombrio. Andaram por entre as árvores e foram sentar-se em uma grade próxima às gangorras. Ele ainda carregava o livro.

"Eu tinha uns dez anos, o Carlos era mais novo. Éramos muito curiosos, como todo moleque. Vivíamos explorando o bairro, as casas abandonadas, as matas ao redor, os porões das nossas casas em busca de uma grande aventura ou de um mistério a desvendar. Ficávamos de castigo como algo sagrado, pelo menos uma vez por semana. E, na primavera daquele ano, mudou-se um senhor para a vizinhança, em uma casa que ficava no meio do quarteirão. Já tínhamos explorado aquela casa umas duas vezes antes de ele se mudar, mas tudo o que encontramos foi um amontoado de lixo pervertido". Enquanto dizia esta última frase, Jorge tinha um semblante carregado de névoas.

"Começamos a espionar o velho. Ele tinha modos estranhos, rezava alto, gritava muito e falava sozinho. Parecia um daqueles malucos que acabaram de sair de um manicômio. Quando saía para fazer compras, colocava um chapéu velho que cobria toda a enorme careca em sua cabeça. Devia ter uns 40 anos. Ele era um cara esquisito. Começamos a pensar em fazer pegadinhas com ele, perturbá-lo, para ver o que ele faria.

Achávamos engraçado quando ele nos surpreendia brincando de bola em seu gramado. Ele surtava. Ficava gritando que odeia crianças, que não queria ninguém em sua propriedade, e que o Diabo comeria a carne de crianças desobedientes. Ele era motivo de piadas na escola quando contávamos para nossos amigos.

Ele passava muito tempo no quarto sentado em uma cadeira, conversando com uma cama vazia, como se tivesse alguém lá, deitado. As poucas vezes que conseguimos ouvir o que ele dizia, apenas confirmavam o quão desequilibrado ele era. Chamava por alguém de nome Jakub, que até então não sabíamos quem era. Rabiscava alguns papéis e depois contava histórias criadas por sua mente doentia. Aquele não era o quarto em que ele dormia. Aliás, ele quase não dormia. Ficava arrastando coisas pela casa, escrevia compulsivamente e comia coisas estranhas. Aos poucos, observá-lo, tornou-se uma obsessão para nós.

Certa vez, vimos este senhor sentado na varanda, com uma manga na mão. Ele conversava com a fruta e cortava lentamente fatias dela e as comia, com casca e tudo. Ficava alucinado com as gotas do caldo que escorria por suas mãos. Outra vez, ele estava limpando o quintal e colocou toda a sujeira em um saco normal de lixo. Quando foi fechar o saco, surtou novamente e começou a mandar que calasse a boca, que não mexesse nas coisas dele, para que aprendesse a respeitar as pessoas. E ajoelhou diante daquele entulho, e enquanto o amarrava como a um porco, dizia que era ordem de Deus que todas as crianças fossem castigadas.

Uma vez por mês, algumas pessoas visitavam aquela casa. Entravam, passavam algumas horas ali e depois saíam, tão silenciosamente quanto tinham entrado. Em uma dessas visitas, Seu Joaquim, que morava na esquina, perguntou quem era aquele senhor e o que faziam ali. O rapaz, que parecia ser enfermeiro, falou que era apenas um rico exótico e misantropo e que não precisavam ter medo dele.

Numa sexta-feira à tarde, quando voltávamos da escola, Carlos e eu resolvemos bisbilhotar o velho de novo. Ele estava de saída com aquele chapéu bizarro emborcado na cabeça. Aproveitamos para entrar na casa, ver o que tanto ele escrevia e conseguir mais detalhes para contarmos nas rodinhas de amigos. A janela da sala de estar estava aberta. Deixamos as mochilas atrás do jardim, tiramos os sapatos e pulamos. A casa fedia a urina e fezes, era toda escura e tinha coisas espalhadas por todos os cômodos. Fomos direto ao quarto onde ele passava a maior parte do tempo escrevendo, o quarto de Jakub, como pudemos constatar pela plaquinha escrita na porta com letras infantis. Havia uma cama, uma cadeira na cabeceira, uma cômoda velha cheia de roupas de menino com aproximadamente a nossa idade, e alguns brinquedos amontoados em um canto. As cortinas pareciam prestes a despencar. Será que ele tinha um filho? Começamos a postular teorias. Talvez ele fosse casado, mas a mulher o abandonara levando seu filho. Talvez o filho tivesse morrido e ele ficou louco e a mulher o largou. Sentamos um pouco para ler aqueles papéis. Eram histórias horríveis, onde ele contava aventuras envolvendo três crianças em que uma delas era maligna. Havia desenhos nos cantos que mostravam uma garotinha segurando uma faca e o rosto de duas mulheres com chifres e olhos flamejantes.

Subimos ao segundo andar. Este era impecavelmente limpo. Os quartos totalmente organizados, bem diferente do andar inferior. Com certeza, o cara maluco não devia subir ali com muita frequência. No fim do corredor tinha uma porta, a única que estava trancada e que sabíamos que era o sótão. Começamos a procurar a chave na insana ideia de descobrir o que ele poderia estar escondendo naquele lugar. Foi quando ouvimos a porta da frente bater com força. Passos acelerados no andar de baixo nos puseram em desespero e nos enfiamos debaixo da primeira cama que encontramos. Carlos chorava de medo e eu tentava acalmá-lo e pensava no que poderia fazer. Era o velho, com certeza.

Os passos desaceleraram. Dava para ouvi-lo conversando sozinho lá embaixo. Fui até a janela para ver se conseguiríamos descer por ali. Mas era muito alto. 'Deixa ele dormir, dá a gente sai', disse Carlos com a voz trêmula. Ficamos escondidos naquele quarto por cerca de uma hora, até que ouvimos passos de alguém subindo as escadas. Era a nossa chance. Se ele entrasse no banheiro para tomar banho, ou fosse se deitar, poderíamos sair correndo daquela casa.

O homem andava calmamente agora. Ouvimos uma porta abrir-se. Mais passos, e ela se fechou. Outra porta foi aberta e fechada. E mais outra vez o ritual se repetiu. Será que ele estava procurando por nós? Será que ele desconfiou que estamos aqui? Era o que eu pensava quando a porta do quarto em que estávamos escondidos abriu-se. Aquela figura pareceu sentir o cheiro do nosso medo. Sussurrava coisas que não entendíamos e caminhava em direção à cama. Sentou-se. Era possível ver as rachaduras no calcanhar dele, e o cheiro horrível que elas exalavam. Ele calçava um chinelo velho de pano. 'Vocês estão com fome?', disse o homem. Não respondemos, porque tínhamos medo. 'Eu cozinhei panquecas, não tenham medo'. Antes que eu pudesse detê-lo, Carlos saiu de baixo da cama rastejando-se e, todo encolhido, pôs-se de pé diante do inquisidor.

Ele mantinha uma serenidade assustadora no rosto e na voz. Me senti forçado a sair também e encarar as consequências de nossa travessura. Quando ficamos os dois diante dele, ele apenas levantou-se e andou em direção ao sótão. 'Vão ficar parados aí? Venham conhecer o Mundo Mágico da Família Mareová. Aposto que sairão daqui completamente transformados depois desta experiência'. Nós não pensamos duas vezes, tamanha era nossa curiosidade. Mas logo que alcançamos o topo das escadas, o velho fechou a porta atrás de si e alguma coisa pareceu possuir sua sanidade temporária. Seu rosto estava levemente afeminado. Carlos começou a achar engraçado, mas eu me arrepiei todo. Tive um mal pressentimento. Ele começou a cantar uma canção infantil sombria que falava de pássaros em gaiolas.

Enquanto Carlos e eu nos encolhíamos num canto daquele sótão sujo e fedido, o homem caminhava para lá e para cá, e por vezes, dirigia a nós aquele olhar que jamais esquecerei: ele tinha fome... Agarrou Carlos pelos braços e jogou-o dentro da jaula como se ele fosse um saco de lixo. Carlos não conseguia se levantar, pois batera a cabeça contra a parede e machucara o cotovelo. Quando ele veio até mim, para me enfiar naquele buraco, tentei acertá-lo com um cano que peguei do chão. Em vão, ele era muito forte e da mesma maneira que fez com Carlos, arremessou meu corpo para dentro daquela prisão. A jaula era pequena, mal cabia nós dois.

O velho desceu as escadas e começava a escurecer. Nossos pais notariam nossa ausência. 'Jorge, ninguém vai nos procurar... A mamãe vai pensar que eu fui para sua casa e sua mãe vai pensar que foi para a minha', disse Carlos, açoitando minhas esperanças. 'Mas alguma hora elas vão perceber que desaparecemos', tentei acalmá-lo. E então o velho voltou.Trazia consigo uma faca de cozinha, talheres e um prato cheio de panquecas. Quase pensei que ele não devia ser tão mal assim. 'É hora do jantar, meninos'. Cortava pedaços das panquecas e atirava para dentro da jaula para que comêssemos. Quando ainda faltava duas panquecas para acabar nossa refeição, ele pegou a faca e começou a afiá-la. Senti um calafrio...

O homem veio lentamente em nossa direção. Parou na grade da jaula, encostou a faca nas barras de ferro e sorriu para nós. 'Deixe-me ver seus braços', disse, puxando Carlos para mais perto. Carlos começou a chorar e eu tentava soltar o braço dele das mãos daquele monstro. Ele cortou pequenas fatias e colocou em cima das panquecas. Eu tentava socorrer Carlos e o desgraçado comia seu jantar satisfeito. Quando terminou, apagou as luzes e nos trancou naquele lugar.

O dia seguinte foi recheado de banhos frios, pois ele dizia que porcos devem ser bem lavados para o consumo. Tive partes de minhas pernas fatiadas e digeridas ali mesmo, na nossa frente. Carlos parecia estar em choque, não conversava comigo, apenas encolhia-se em posição fetal. Eu arranquei nossas roupas para estancar o sangue dos ferimentos, mas cada novo dia era uma tortura infernal. Não éramos alimentados, sentíamos muito frio. Ninguém veio nos buscar. No quarto dia de cativeiro, o velho não apareceu. Nem no quinto, nem no sexto. Começamos a achar que ele havia desistido de nós. Tentei manter Carlos acordado, mas ele já não respondia a qualquer estímulo.

No outro dia, o sol já estava alto quando acordei. Meu estômago doía de fome e desespero. Chamei Carlos, balançando seu ombro. Nada. Ele respirava, mas não acordava. Coloquei o ouvido em seu peito para tentar ouvir seu coração batendo, e pude ouvir batidas bem descompassadas e fracas. Ele estava morrendo. Precisávamos sair dali. Juntei todas as minhas forças e gritei o mais alto que pude. Fiz isso por muito tempo, até não conseguir mais. Tinha fome. Senti o ímpeto de comer aqueles pedaços de tecido que sobraram de nossas roupas. Havia sangue em todos eles. O sabor era de ferro, ferrugem, coisa velha, mas não tinha escolha. Aquela ideia insana de cortar pedaços do meu amigo começou a povoar minha cabeça, mas não, não podia fazer isso. Desfaleci de tanta fraqueza.

Acordei quando o sol já tinha partido. Agarrei uma peça de roupa e tentei alcançar o canivete, descuidada ou intencionalmente deixado sobre a mesa. Com ele tentei abrir o cadeado. Cortei dois dedos, mas fracassei. Era impossível abrir. Esperei um pouco. Talvez o homem voltasse e eu pudesse furar sua jugular para roubar as chaves e sair dali. Eu não conseguia resistir... A memória visual daquele homem comendo fatias de nossa carne tomou conta de mim e quando me dei conta, estava engolindo partes de meu amigo. Não pude parar, sentia fome... A porta do sótão abriu-se finalmente após quase 4 dias de isolamento. O homem sorria ao me ver comendo com tanta vontade. Minha mente já não respondia, só conseguia comer, comer, comer...

O desgraçado sádico abriu o cadeado da jaula e escancarou a saída. 'Pode sair, leve seu amigo, estão todos procurando por vocês, não foi fácil mantê-los longe daqui'. Puxei Carlos pelos braços e fui me arrastando com ele até a porta de entrada da casa. Continuei carregando meu amigo até desfalecer perto da esquina. Era noite e não havia ninguém nas ruas.

Acordei dias depois, em uma cama de hospital, rodeado por parentes. Carlos não conseguira sobreviver. Foi Seu Joaquim que chamou o socorro. Perguntei sobre o Monstro. Minha mãe desabou em prantos, mas disse que ele havia sido levado para um sanatório e não responderia pelos crimes. Levei muito tempo para digerir todas as transformações que aquele maldito Mundo Mágico me  proporcionou. Com o tempo, passei por vários tratamentos, superei a perda do meu amigo, mas para sempre carregarei este gosto de ferrugem na boca.

Anos atrás, pouco antes de você me conhecer, eu quis ficar de frente com o Monstro, quis encarar aqueles olhos flamejantes. Ele ficou surpreso quando eu o visitei no sanatório. Ele se chama Ondrej. Os médicos me disseram que ele e seu irmão Jakub foram vítimas de um caso hediondo de maltrato infantil que levou o nome da família Maureová às escalas mais baixas da sociedade. A mãe, a tia e uma desconhecida psicótica teriam feito com eles o que ele fez comigo e com Carlos. Até hoje ele acredita que o irmão está vivo, por isso sempre víamos o homem naquele quarto de criança. Não tive assuntos para falar com ele. Tive medo de retomar minhas lembranças da infância e ficar doente de novo.

Mas esta noite fui surpreendido pelo presente que ele me enviou. Alguém me chamou na portaria do salão e me entregou este livro. Havia apenas este bilhete, em letras quase infantis: 'Nobre valente, cavaleiro das trevas, concedo a você o meu legado...'"

Miriam estava imóvel. Sabia que o namorado visitava um tal Sr. não sei do que, no manicômio, mas não entendia os reais motivos. Tinha quase certeza de que fazia parte de algum experimento para a faculdade. Desconhecia completamente o cara por quem havia se apaixonado. Ficaram alguns minutos em silêncio, os dois. "Abra!", disse Jorge, colocando o pesado livro nas mãos de Miriam. Estavam ali todas as histórias que Ondrej havia escrito a punho, para acalmar as noites de Jakub, as memórias daqueles dias infernais na jaula, as músicas que sua mãe cantava, a doutrina descabida do "Movimento Graal", os desenhos assustadores que sua mente perturbada realizava. E, soltos, no meio daquelas folhas cheias de suor, lágrimas e sangue, estavam a escritura da casa, um testamento deixando-lhe todos os seus bens e uma procuração pelos direitos autorais sobre suas histórias, suas memórias e sua arte. Ondrej tornara Jorge um homem muito rico.

"E o que ele esperava com isso?", perguntou Miriam em tom de medo, surpresa e desespero.

"Ele foi um Herói, Miriam. Como eu, sobreviveu a uma situação em que muitos desistiriam. E, embora seja considerado insano, nunca permitiu que a sociedade o cegasse. Nunca apagariam suas memórias. Nós estivemos além das fronteiras jamais ultrapassadas por vocês, e de onde os vemos, não existe bem ou mal. Existem apenas Consciências fazendo escolhas para experimentar todos os sabores que se há para provar. E que a sua loucura seja louvada, porque ele não nos matou: eles o mataram quando o obrigaram a voltar àquela casa e encarar seus demônios, até ser possuído por eles. Sou apenas um aprendiz".

Miriam não disse nada, por algumas horas, apenas desenhava na areia, como quem tenta ligar os pontos de um quebra cabeças. Jorge caminhava por entre os brinquedos do parque. Os dois jamais foram vistos novamente. Especulam que devem ter ido para a Tchecoslováquia, outros dizem que foram sequestrados e mortos, mas o que se tem certeza é que os livros de Ondrej foram impressos e continuam sendo vendidos e alguém está desfrutando desta HERANÇA DOENTIA.


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